Bolivia:Emir Sader- Entrevista con el Vice-Presidente de Bolivia, Älvaro Garcia Linera
11 de septiembre, Alainet


 Um brutal e covarde cerco informativo foi montado contra o governo de Evo Morales, especialmente a partir dos conflitos em torno da reserva do Tipnis. De repente – como na própria Bolívia – meios monopolistas privados e a direita passaram a aparecer como defensores dos movimentos indígenas e do meio ambiente, enquanto intelectuais de origem esquerdista se prestaram a denunciar o governo boliviano como “fascista”. Nenhum espaço foi dado para ouvir os argumentos de Evo Morales e do seu vice-presidente, Álvaro Garcia Liñera – o mais importante intelectual latino-americano contemporâneo. Reproduzimos aqui trechos de longa conversa com Álvaro, que pude ter na recente visita que fiz à Bolívia, cujos conteúdo estão mais desenvolvidos no seu livro A geopolítica da Amazônia – Poder fazendário-tradicional e acumulação capitalista, recém lançado na Bolívia. Uma antologia de textos de Álvaro foi publica pela Boitempo, com o titulo de A potência plebeia. 

- Qual o caráter do processo político que está vivendo a Bolívia?

 - Na Bolívia, nos últimos 12 anos, vivemos um ascendente processo revolucionário que, emergente desde a sociedade civil organizada como movimento social, afetou e atravessou a própria estrutura estatal, modificando a própria natureza da sociedade civil.

 Trata-se de uma revolução política-cultural e econômica. Política, porque revolucionou a natureza social do Estado ao ter consagrado os direitos dos povos indígenas e a condução desses direitos desde a própria ocupação da administração estatal por eles (os indígenas). Estamos falando de um fato de soberania social que permitiu a conversão da maioria demográfica indígena em maioria politica estatal; uma modificação da natureza social-classista do mando e hegemonia estatal. 

 De fato, essa é a transformação mais importante e significativa no país desde seu nascimento, caracterizado até a pouco tempo pela exclusão da cidadania indígena em absolutamente todas as estruturas da tomada de decisões do Estado. Mas é também uma revolução político-cultural radical, porque esta marca indígena na tomada de decisões públicas como poder de Estado veio pela mão dos movimentos sociais e de formas organizativas de caráter sindical, comunal e plebleia do mundo indígena-popular. Isto é, a presença do mundo indígena popular na condução do Estado desde 2006, se materializou não como uma simples ocupação individual de representantes indígenas e populares no seu interior, mas como uma transformação organizada da própria institucionalidade estatal mediante a presença de estruturas organizativas do mundo indígena-popular na trama de decisões e de deliberações do Estado. 

 E também econômica, porque em um prazo histórico breve, a estrutura de propriedade da riqueza social e de seu usufruto se modificou radicalmente. Até 7 anos atrás, o Brasil junto com 3 empresas petroleiras controlavam 100% da propriedade dos hidrocarburos e 30% do PIB, enquanto o Estado só controlava 16%. Em compensação hoje o Estado boliviano controla 34% do PIB e 100% dos hidrocarburos em toda a cadeia produtiva. Mais de 10% de hectares em mãos de latifundiários, políticos e estrangeiros foram recuperadas pelo Estado e entregues a povos indígenas e a comunidades camponesas, pondo fim ao caráter latifundiário do sistema agrário nas terras baixas. O excedente econômico, concentrado em um punhado de empresas estrangeiras e empresários privados agora, - uma vez nacionalizados os setores hidrocarbonífero, elétrico e de telecomunicações e em parte mineiro-metalúrgico – chega diretamente à sociedade através de rendas, bônus, serviços e inversão estatal produtiva. 

 Em 2011, 1,2% do PIB foi transferido diretamente aos setores mais vulneráveis do pais (crianças, idosos e mulheres grávidas) através desse sistema de proteção social. De investir somente 629 milhões de dólares anais de 2005, porque o excedente economico ia para o exterior, agora o Estado governado pelos movimentos sociais investe pouco mais de 5 bilhões e com isso derrotamos o analfabetismo (havia uma população analfabeta de 823 mil pessoas, em 2006, ja não há mais nenhuma), a diáspora rural, a diferença entre ricos e pobres foi reduzida pela metade, enquanto a extrema pobreza caiu de 38% (em 2005) a 24,3% (em 2011).

- Foi modificada a estrutura da propriedade dos meios de produção e da riqueza pública, assim como se transformou a estrutura distributiva do excedente economico, mas alguns criticam o governo porque alegam que não se modificou o modo de produção.

 - Claro que no fundamental não foi modificada. Como esperar que um país pequeno se defenda cotidianamente da contrarrevolução, organize a unificação de uma sociedade profundamente fragmentada e corporativizada, leve adiante a revolução política mais importante de sua história, mude a estrutura de propriedade e distribuição econômica e, além disso, em 6 anos – sim, em apenas 6 anos – mude de forma isolada um modo de produção que demorou mais 500 anos para se instaurar e que ainda continua expandindo-se? Pedir isso, nesse lapso de tempo, não é por acaso um desproposito intelectual, além de que mostra uma falta de localização histórica básica? Não é mais sensato discutir que tipo de tendências se estão impulsando na Bolívia para promover uma transformação do modo de produção, em sintonia com as transformações que cada um de nós estamos fazendo em outros países como o mesmo objetivo?

 Cada uma das mudanças políticas e econômicas que se deram dentro do processo revolucionário do país, afetaram de maneira direta a governos e empresas estrangeiras, a capitalistas, a empresários, a elites e classes sociais privilegiadas que monopolizavam os bens materiais da sociedade, os recursos públicos do Estado e os bens simbólicos do poder social. O desmonte da branquitude racial como capital, como componente material (ou “riqueza”) da estrutura de classe e da dominação de classe (tão próprio de todas as sociedades coloniais), rompeu não somente um imaginário racializado secular da dominação sobre os indígenas, mas além disso fez desmoronar um bem, uma “riqueza”, que permitiu a uma pequena casta se apropriar e se legitimar nos sistemas de dominação político-cultural e de propriedade econômica durante séculos. Esta descolonização classista da sociedade, ancorada no habitus mais profundo de todas as classes sociais, modificou radicalmente a estrutura do poder político e também deslocou, sem ambiguidades, as classes dominantes constitutivas do antigo Estado. (continua)

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